26 abril 2011

Ficções

(a todos aqueles que defendem a linha do Tua)



Foi ao passar junto ao pedaço de espelho pendurado na porta, aí a metro e meio do chão, que o Agripino se assustou. Levava um molho de lenha ao peito, amparado pelas duas mãos mas nem deu por isso. Aquela cara ali espelhada na porta era de alguém que ele conhecia muito bem, só que ao vê-la, assustou-se e deu um passo atrás. Mas que diabo era aquilo? Os cabelos desgrenhados e brancos, quase lhe cobriam os olhos e as orelhas nem se viam, tapadas com os mesmos e com as barbas que ali nasciam e lhe chegavam ao segundo botão da camisa.
Repôs o passo em frente e aproximou mais o rosto do pedaço de espelho. Os olhos do Agripino e os do espelho abriam e fechavam em simultâneo, como simultâneas eram as caretas. Esta agora, dizia o velho quando se descobriu ali espelhado. E desatou a rir, primeiro baixinho e incrédulo, depois gradativamente mais alto até chegar às gargalhadas sonoras que transportou para o interior da casa, em direção à lareira, onde pousou o molho de lenha para acender o lume.
Das profundezas do bolso de fora do velho casaco tirou uma caixa de fósforos e do outro bolso arrancou um pedaço de cigarro que foi direitinho para o meio dos lábios. Riscou o fósforo na lixa e os dedos, um pouco trémulos, transportaram a pequena chama bruxuleante até à ponta do cigarro que logo brilhou na semi obscuridade, à primeira fumaça que o velho puxou. Só depois, ainda com a pequena chama quase a extinguir-se no fósforo, chegou-o às giestas que ficaram sob o molho de lenha e, como se houvera um milagre, as chamas começaram a crescer e a crepitar até se transformarem em altas labaredas a iluminar e a aquecer o lar.
Como o fumo acompanhava o lume a erguer-se, o velho começou a tossir e saiu, quase aflito, para repor o ar puro da rua nos pulmões.
Já mais aliviado, ficou-se então no meio da plataforma, olhando, distraído para um lado e outro dos carris ferrugentos, como se estivesse à espera do comboio que nunca mais chegaria, pois o iriam substituir por uma barcaça navegando sobre as águas paradas de uma barragem.
Depois de olhar para os lados, olhou em frente, para as águas do rio que ali corriam num sussurro, tranquilas e transparentes, entre pedregulhos e tiras de areia.
Não, o comboio não mais passaria ali nem pararia à frente daquele triste apeadeiro que o tempo e o abandono de muitos anos, quase tinham destruído.
Foi por isso que o velho Agripino se alojou ali, sozinho, sem família e sem saúde, e fez do apeadeiro a sua primeira casa.



Hélder Rodrigues

7 comentários:

Anónimo disse...

Fraseologia e Modismos Vernáculos

Na literatura portuguesa há exemplos típicos de escritores que se não designaram de recorrer a modismos populares, vernáculos, para granjearem vivacidade, graça, ênfase, precisão expressivas.

Escolho dentre estes escritores, o menos conhecido e menos estudado, pois foi ele quem me inspirou o tema das considerações deste texto.

Chamou-se Francisco Xavier de Oliveira, ou, como o alcunharam nas terras estranhas por onde ganhou a vida, o “Cavaleiro de Oliveira”.
Redigiu cartas com tanta vivacidade e flexibilidade de estilo, que mais se diria escritor do nosso tempo.
Longe da pátria, sob a influência de usos e costumes e da linguagem dos ambientes estrangeiros, reconhecia que a sua fala e os seus escritos se não podiam livrar da expressão envolvente:
“Tomara eu poder conservar entre estas línguas bárbaras, onde barbaramente caí, a língua que me deram meus Mestres, e que por pecados meus e alheios me vão derrotando…”.

Postas as coisas nesta fria objetividade, aqueçamos a nossa admiração, menos com o intuito de imaginar intraduzíveis as nossas “dições” idiomáticas, do que com o louvável esforço de apreciar, particularmente, o grande poder expressivo da linguagem viva e figurada do povo português, naturalmente senhor de uma grande e vincada personalidade frásica, de um forte e inconfundível poder imaginativo.

Hélder Rodrigues, no seu género e no seu tempo, é um “modista”.
Os seus jeitos, tipicamente vernáculos, são filhos do extraordinário poder de imaginação popular, cuja tendência é engordar a magreza do vocabulário seco das línguas.

Não me surpreendeu o seu escrito…

Hélder Rodrigues habituou-me a ver nele um representante desse poder imaginativo do nosso povo…
… a “figura” do Agripino é prova disso mesmo!

Os meus sinceros parabéns.

Carlos Fiúza

Anónimo disse...

O texto de HR faz-me ter sentimentos diferentes e até opostos.
Quanto à forma, eu, que não tenho quaisquer veleidades literárias, não podendo, portanto, emitir qualquer juízo com autoridade particularmente respeitável, penso que se trata de texto bem conseguido, com descrição correcta de uma situação de abandono.
Quanto à substância, numa leitura imediatista, parece ressaltar uma valorização do passado e duma maneira simples de ser, de que se sente saudades e que desejaríamos voltasse a ser cenário da nossa existência. Quantas vezes, comigo, me acontece precisamente o mesmo!
Quantas vezes, eu me sinto feliz, ao lado do meu pai, a ajudar a regar a horta, as batatas, as árvores de fruto, a colher os figos, as ameixas, as peras, - e como desejava que tudo isso voltasse a ser realidade! Como eu gostava de viver, pelo menos uns dias, de quando em vez, nesse passado que não volta e como sinto a tristeza do definitivamente ido!
Veja onde me levou a sua imaginação!
Numa leitura mais actual, pensamos que hoje não podemos ficar por aqui. Teremos que equacionar tudo em termos modernos e seremos obrigados a medir os prós e os contras da construção da barragem ou da manutenção da linha férrea.
Como seria bom que, com uma visão apenas sentimental , pudéssemos resolver estas(e outras) questões!
JLM

Anónimo disse...

Meus caros C.F. e JLM:

fico-vos sinceramente grato por vos merecer a vossa apreciação. Bem hajam.
Quanto à opinião de Carlos Fiúza, e mais concretamente no que concerne ao aspeto fórmico, estou de acordo com as razões que aponta em relação ao modismo. Na verdade, tenho tido uma certa predileção, na minha ficção (cuidado com a "dição"!), pelos modos de falar (e isto agora levar-nos-ia aos idioletos, localismos, regionalismos...e por aí fora, mas agora não há vagar), eu que até sou um citadino (Mirandela), mas já com muita prática social no mundo rural. Quanto ao paralelismo (curioso) que estabelece entre mim e o oitocentista Francisco Xavier de Oliveira, até o aceito, pelos motivos que aponta. Ademais, tal como ele, estou certo de que também eu seria excomungado pela inquisição (letra pequena, claro) se tivesse sido seu contemporâneo; só não sei é se me teria casado tantas vezes como ele...
Quanto ao prezado João Lopes de Matos, não posso concordar consigo (mais uma vez) quando alega que do meu texto "parece ressaltar uma valorização do passado (...) de que se sente saudades...". Não. Este extrato de conto reflete uma triste (para mim) realidade: a morte da linha do Tua e suas estações e apeadeiros, sustituidas, ingloriamente, por uma barragem de águas paradas e sujas. Trata-se, pois, de uma temática bem do presente e do futuro próximo e não de uma simples analepse, como intui JLM. Bastaria que visse (se ainda não viu) o filme documentário "Pare, Escute, Olhe". Mas gostei muito de o ter feito levar longe a sua "imaginação". Isso já é um bom encorajamento...
Cumprimentos.

h.r.

Anónimo disse...

Dição e/ou Dicção?

Meu caro h.r.

Quando, pela primeira vez grafei dição, fui “alertado” para o facto de a grafia correcta ser “dicção” (com cç) e não dição.
LVS disse, inclusivamente:
- “Já que fala em "exercício glótico", componha lá, se faz favor, a sua "dição", substituindo-a pela grafia correta: DICÇÃO! É que o novo acordo ortográfico não "corta" as consoantes que se pronunciam…” (A “auga” dos senhores deputados).

Com referência a esse mesmo texto, disse o meu Amigo:
- “Neste texto bem "montado" (concebido), CF repete CINCO vezes o erro "DIÇÃO". De propósito? ou não? Apenas distração? Acontece-nos na "escritaria", não é?

Na altura não contestei por me ter parecido ser um “problema” de somenos importância (repare que admitiu ser “apenas distração” (com ç e não com cç, como “dicção”).

No meu comentário ao seu artigo “Ficções” (e como é meu “defeito”), propositadamente grafei (mais uma vez) DIÇÃO.
A “estratégia” pegou…
-“Cuidado com a “dição”… foi-me por si sugerido em resposta ao meu comentário.

Em face do exposto,
venho, agora, “terçar armas” pela minha “Dama” (o direito de escrever DIÇÃO).

Vejamos:
Nem a pronúncia natural nem o étimo justificavam a grafia DICÇÃO, imposta pelo anterior Acordo Ortográfico Luso Brasileiro.
Apesar de o mesmo latim “dictionem” ser a base das formas cultas - dicionário, dicionarista, estas não se grafam diccionário, diccionarista (respectivamente registo e registador de dições).

Note-se que as outras línguas mantêm o “c” tanto no termo primitivo como no derivado: “diction”, “dictionaire”; “diction”, “dictionary”; “diccion”, “diccionario”.
O italiano e o português, porém, têm: “dizione”, “dizionario”; “dição”, “dicionário”.

Portanto, cientificamente, a “dicção” do Acordo anterior era inaceitável como forma obrigatória.

Já há mais de quatro séculos, na Gramática de Fernão de Oliveira, se tirou o “c” à dicção!
E por as razões apresentadas serem de “peso”…

O novo Acordo Ortográfico, dando a mão à palmatória, já contempla: DIÇÃO e DICÇÃO.

É sempre um prazer “discutir” consigo… com ou sem “excomunhão”!

Cumprimentos
Carlos Fiúza

Anónimo disse...

Parabéns, Carlos Fiúza, pela DICÇÃO. Verifico que revela atenção e, muito mais!... Pena é que, infelizmente, outros dignos arautos da linguística(?) não demonstrem esse mesmo interesse e empenho por esses labirintos específicos da nossa cultura mais nobre: a LÍNGUA MATERNA, aliás, como o soube fazer, tão bem, o nosso Miguel Torga.

Respeitosos cumprimentos,

LVS

Anónimo disse...

Caro Carlos Fiúza:
como disse noutro espaço, estive fora alguns dias e só agora retomo o meu contacto com o blogue.
Quando lembrei a "dição", foi para "responder" ao que me pareceu uma "brincadeira" quando C.F. comentou o meu conto mais acima, dizendo a certa altura: "...aqueçamos a nossa admiração, menos com o intuito de imaginar intraduzíveis as nossas "dições" idiomáticas...". Apenas quis retribuir aquilo que me tinha parecido um momento humorístico da sua parte. Mas está bem, já que voltamos ao assunto e v. quis "defender a sua dama", deixe-me também "defender a minha". Assim, quanto à dúvida "dição/dicção" tenho a dizer o seguinte: é fundamental atendermos à forma de pronunciar predominante entre os falantes nativos mais instruídos (pronúncia culta). Deste modo, o "c" com valor de oclusiva velar das sequências interiores "cc" (o segundo c com valor de sibilante), ora se conserva ora se elimina. Assim: a) CONSERVA-SE nos casos em que é INVARIAVELMENTE PROFERIDO (compacto, convicção, ficção...);
b) ELIMINA-SE nos casos em que é INVARIAVELMENTE MUDO (ação, acionar, afetivo, coleção...);
c) CONSERVA-SE ou ELIMINA-SE FACULTATIVAMENTE quando se profere numa pronúncia culta quando oscilam entre a prolação (pronúncia) e o emudecimento (aspeto/aspecto; cato/cacto; carateres/caracteres; fato/facto; DIÇÃO/DICÇÃO...).
Meu caro C.F., esta é que é a verdadeira explicação (a verdadeira "defesa da dama") linguística para o caso linguístico em apreço. E em face desta explicação, devo dizer-lhe que opto por "DICÇÃO" porque é verdadeiramente pronunciada a segunda consoante que é sibilante na nossa língua NATIVA.
Como sabe bem "(não)discutir" consigo. Cumprimentos.

h.r.

Anónimo disse...

Caríssimo h.r.

"Touché"!

Aqui está está como cada um de nós pode (ao defender a sua "Dama") optar por um dos termos da alternativa...

O meu caro amigo opta por DICÇÃO... (está no seu direito e até é escorreito no que refere quanto à sibilinidade da segunda consoante).

Eu continuo a grafar ora DIÇÃO ora DICÇÃO,

mas agora,

...liberto da "imposição" de grafar sempre dicção...

...liberto (enfim) da "culpa" de estar a grafar erradamente...


Foi uma boa "lição" a sua (sábia, como sempre).

Sem "discussão",

Melhores cumprimentos,


Carlos Fiúza