21 abril 2013

O Capital Financeiro (II): Carlos Fiúza



3.        O Capital Financeiro e o marxismo tradicional

   Marx criticou, violentamente, a "teoria reducionista do capitalismo” e pôs Proudhon a ridículo. O movimento operário marxista demarcou-se, claramente, da ideologia pequeno-burguesa e da sua mal versada noção de capital. O objeto da crítica era o próprio capital produtivo socialmente concentrado a alto nível e, portanto, o modo de produção capitalista enquanto tal. E isto com base na experiência dos operários fabris, que compreendiam perfeitamente que a lógica capitalista (que eles tinham de suportar nas suas vidas) era a do próprio processo de valorização produtivo e não a de um “vampiresco” poder exterior do capital que rende juros.
   Em todo o caso, também a crítica do capitalismo do marxismo do movimento operário ficou reduzida, se bem que de um modo diferente do da pequeno-burguesa. Contrariamente ao cerne da teoria marxista, as formas sociais do princípio da valorização (trabalho abstrato; forma do “valor”, "economia empresarial"; forma do dinheiro como forma geral da reprodução, mediação do mercado, regulação estatal, etc.) seriam compreendidas, sobretudo, como fundamentos ontológicos supra-históricos da socialização e não como coisas a superar. A crítica não se virou, realmente, contra a lógica de fim em si mesmo do sistema já interiorizada nas suas formas, mas (neste especto muito à maneira da crítica pequeno-burguesa) contra o grupo sociologicamente determinado ("classe") dos beneficiários e representantes. Não era o capital, como forma de reprodução "objetivada", mas os capitalistas, como portadores da vontade social de exploração subjetivamente compreendida, que pareciam ser o mal. Mas, contrariamente à ideologia pequeno-burguesa, os próprios donos das fábricas do capital produtivo seriam como tal considerados, sendo os donos do capital que rende juros apenas uma fração periférica da "classe capitalista".
   O que o movimento operário chamou “socialismo” não passava, na realidade, de uma ideia de "capitalismo organizado" sem capitalistas, considerado como proprietário jurídico do capital produtivo. Os operários fabris aspiravam, por um lado, ao reconhecimento jurídico, como sujeitos integrais e autónomos do processo de valorização (direito de voto, direito de sindicalização, direito do trabalho, estatuto da empresa, etc.); por outro lado, devia a "mais-valia obtida", ou ser distribuída com justiça entre os trabalhadores (segundo Lassalle), ou com justiça administrada pelos representantes da "classe operária".
   Era completamente o que Marx sempre qualificara de "ilusão jurídica", ou seja, a noção ideológica de que a lógica da valorização do capital ontologizada e intacta enquanto tal, no seu contexto da forma e no seu caráter destrutivo de fim em si mesmo, poderia ser transformada numa sociedade diferente, de algum modo redefinida como amiga da humanidade através duma simples mudança das relações de propriedade jurídicas e das relações de poder políticas a favor do trabalhador.
   À falsa ontologia do marxismo do movimento operário pertence, também, a pretensamente natural abstração "trabalho", isto é "o trabalho abstrato", segundo Marx a substância do capital. Mas a consequente ética "protestante" do trabalho do marxismo tradicional ainda se diferencia da ética paternalista dos pequenos burgueses, empresas familiares, donos de hospedarias, artesãos, pequenos lojistas, etc.. Era a ética do trabalho mais "objetivada" e abstrata, no contexto de grandes estruturas e processos funcionais cientificizados muito mais agregados. Como resultado, é certo que surgiu o impulso primário contra os "rendimentos sem trabalho" ("fora com os ociosos"), tal como entre os pequenos burgueses; mas também dirigido contra os proprietários jurídicos dos meios de produção objetivamente socializados, em vez de apenas contra os "tubarões do dinheiro" do capital que rende juros e, neste contexto, com uma relação completamente diferente para com o papel crescente do crédito.
   É certo que também Engels fez coro (com o seu tempo) no Anti-Duhring, com o falso ataque aos "cortadores do cupão" do capital por ações, e na linguagem da agitação o marxismo do movimento operário juntou-se muitas vezes, preocupantemente, à soada pequeno- burguesa contra os bancos, os magnatas da finança, etc.; mas, no fundo, estava afinal uma relação totalmente diferente com o papel da "superestrutura do crédito". Por outro lado, foi ainda atacado o papel pretensamente subjetivo da propriedade jurídica; a própria expansão do sistema de crédito em todo o caso e, contrariamente à "teoria do capitalismo" pequeno burguês, não se apresentava como a causa de todo o mal, mas pelo contrário como função de progresso e socialização.
   Invocando Marx e apoiando-se na sua análise do desenvolvimento do capital financeiro, Hilferding acreditou poder constatar: "O capital financeiro exprime a sua tendência para o estabelecimento do controle social sobre a produção. É contudo uma socialização na forma de antagonismo: o domínio sobre a produção social fica nas mãos de uma oligarquia. A luta para desapossar esta oligarquia constitui a última fase da luta de classes entre a burguesia e o proletariado. A função socializante do capital financeiro facilita, extraordinariamente, a superação do capitalismo. Logo que o capital financeiro tenha sob seu controle os principais ramos de produção, estando a sociedade tomada pelo seu órgão de execução consciente, será suficiente ao estado, conquistado pelo proletariado apoderar-se do capital financeiro para imediatamente conseguir dispor dos principais ramos de produção." (Hilferding, ob. cit.).
   Hilferding fala aqui pelo marxismo do movimento operário no seu conjunto (mesmo tendo havido diferenças no que concerne à tomada do poder proletário e ao conceito de estado). A consequência formal no que respeita ao capital financeiro é, em todo o caso, diametralmente oposta à dos pequenos burgueses: como o objeto da crítica é o capital financeiro (e não só o capital que rende juros), trata-se de levar mais longe o efeito socializante do capital financeiro e contar com o "controle operário", em vez de imaginar uma sociedade de pequenas empresas livres da "servidão dos juros". Mas este programa do marxismo do movimento operário ficou ainda limitado à ilusão jurídica e à ontologia capitalista do sistema produtor de mercadorias. Pelo menos, o antissemitismo não pôde fazer carreira no movimento operário clássico, apesar de certos surtos periféricos nesse sentido (como a influência temporária do antissemita Duhring). Tal aparecia como um típico desvio pequeno burguês, que em todo o caso seria completamente subestimado. Acreditava-se que essa mania se evaporaria com as camadas pequeno-burguesas na crescente socialização e "proletarização" no grande capitalismo.

4.        Trabalho, crédito e crise

Porém, esta previsão otimista havia de revelar-se sem fundamento. Hilferding, em perfeito acordo com as ilusões jurídicas do marxismo do movimento operário, considerou o problema do capital financeiro apenas nas categorias do poder de disposição e de influência político-económica dos grupos sociais ("classes", frações do capital): "A dependência da indústria em relação aos bancos… é consequência do regime de propriedade" (ob. cit.). O problema da crise aparece, apenas, como de importância subordinada. É certo que Hilferding descreve o mecanismo da super acumulação com recurso a Marx, no entanto apenas no plano dos ciclos conjunturais: sobre investimento na prosperidade, surgimento de sobre capacidades, aumentadas também através das bolhas financeiras da especulação com ações e do "capital fictício" daí desenvolvido (Hilferding designa, por exemplo, como "lucro de fundador" a crise que se seguiu à revolução industrial alemã posterior a 1871), até ter lugar a contração na depressão, rebentar a bolha financeira, serem anuladas as sobre capacidades e poder começar um novo ciclo numa base alargada.
   Hilferding, em todo o caso, queria ver uma tendência para o enfraquecimento das crises, graças à crescente importância do capital financeiro. Ele afirmava que o capital financeiro, como "desenvolvimento do poder dos bancos sobre a indústria", atuava no sentido de "dificultar o surgimento de crises bancárias" (ob. cit.). Ao mesmo tempo, acontece que "a concentração crescente tornou as empresas industriais mais resistentes aos efeitos da crise ou à completa bancarrota. Esta resistência aumenta com as formas de organização das sociedades anónimas, que simultaneamente… aumenta extraordinariamente a influência dos bancos sobre a indústria" (ob. cit.). Até o perigo das bolhas financeiras seria cada vez menor: "Com o crescente poder dos bancos, os movimentos especulativos são cada vez mais controlados por eles… com a importância da bolsa, desce ainda mais rapidamente o seu papel como causa do agravamento da crise… As psicoses de massas, como as que produziam a especulação no começo da era capitalista, esses felizes tempos em que cada especulador se sentia um deus que do nada cria um mundo, parece que foram e já não voltam" (ob. cit.).
   Esta foi, contudo, uma previsão gravemente errada.
   A ingénua teoria de Hilferding da domesticação das crises através da mega socialização financeiro-capitalista dos aglomerados bancários e industriais baseava-se, naturalmente, no reducionismo político-jurídico do mundo das ideias do marxismo do movimento operário. Sobretudo se a "transformação socialista" fosse realizada de forma altamente organizada no plano do trabalho abstrato, da forma geral do dinheiro, da "produção planeada de mercadorias", etc. através do controle político do "partido operário" sobre o poder socializador do capital financeiro avançado. Do que menos se precisava era de uma teoria em que o capital financeiro aparecesse como sintoma do agravamento da crise, em vez de sintoma do seu domínio. Hilferding preferiu tomar os seus desejos pela realidade.
   O marxismo do movimento operário também não era nada bom na teoria da crise. O que se explica, facilmente, se se puser o conceito e funções do capital financeiro em relação com o desenvolvimento do trabalho abstrato (que é a substância do capital), e se derivar a teoria da crise desta relação. O valor económico do produto, que contém a mais-valia como fim em si mesmo do capital, segundo Marx, não é senão um “quantum” fetichizado de trabalho abstrato. Contudo, o desenvolvimento das forças produtivas, obtido pela pressão da concorrência, diminui constantemente a quantidade de trabalho por produto. Ou seja, cada produto representa cada vez menos valor e, portanto, cada vez menos mais-valia (apesar das possíveis modificações internas na relação entre valor dos custos de produção e mais-valia).
   Acontece, assim, que não só o processo de valorização deve produzir e realizar no mercado uma massa cada vez maior de produtos com base na mais-valia já atingida, mas que este problema ainda se agrava pelo facto de, por outro lado, uma dada massa de produtos só poder representar cada vez menos valor, ou mais-valia, de que ela depende em exclusivo em sentido capitalista. Já basta projetar, historicamente, um crescimento constante sobre uma base de valor inalterada para evidenciar a sua impossibilidade lógica, como foi repetidamente demonstrado. Mas postular um crescimento constante, com o valor dos produtos constantemente reduzido até uma dose já apenas homeopática, então é de loucos. Como consequência última (e absurda) todo o universo seria entulhado de mercadorias, só por amor da mais-valia (se bem que estas mercadorias se tornem "cada vez mais sem valor" do ponto de vista puramente económico).
   Para lá de todos os ciclos conjunturais tem lugar um processo secular de desvalorização através do desenvolvimento das forças produtivas capitalistas. Daí que existe a dimensão mais profunda da crise para além das simples flutuações cíclicas. Atrás da super acumulação cíclica espreita a super acumulação estrutural, através da qual são atingidos os limites internos objetivos do modo de produção.
   A crescente importância estrutural da super estrutura do crédito financeiro é a forma de reação do sistema ao real processo de desvalorização, que avança pé ante pé. O crédito em grande escala não significa, senão, a antecipação do valor ou da mais-valia ainda não produzida, que é lançada para um futuro cada vez mais longínquo.
   É a capitalização das expectativas.
   Este processo culmina com bolhas financeiras cada vez mais avançadas, essencialmente através do aumento especulativo do valor das ações (isto é, do preço dos simples títulos de propriedade) e do a ele associado "capital financeiro" (Marx).
   O reverso do processo de desvalorização secular é a falta de poder de compra social para realizar o valor, isto é, a mais-valia, com expectativas futuras. Em consequência, no século XX começou a fazer-se a "capitalização do futuro" na forma do crédito privado ao consumo.
   Em medida crescente, investimento e consumo já não são financiados com processos de produção reais, passados, mas com processos fictícios, futuros. Este processo pode ser prolongado, enquanto continuar, a um nível suficiente, a produção real de valor para que, pelo menos, se mantenha a luz acesa. Isto pode aparecer, temporariamente, como absorção da crise, no sentido acima de Hilferding, porque o ciclo real é financeiro, capitalisticamente financiado à cabeça. Porém, numa dimensão mais profunda, não pára de amadurecer um enorme agravamento da crise.
   Com um sopro, rompe-se a frágil corrente financeiro-capitalista entre passado e futuro. Hilferding não podia (nem queria) ver esta relação (tal como o conjunto do marxismo do movimento operário) porque tal constatação teria desencadeado uma crise de identidade ideológica.
   O processo secular de desvalorização das mercadorias é idêntico a uma correspondente desvalorização da força de trabalho e a um tornar-se obsoleto o conceito de “trabalho abstrato”. Deste modo, a sagrada ontologia do trabalho é posta em questão em termos fundamentais, juntamente com a forma do sistema produtor de mercadorias - e isso, simplesmente, não poderia ser.
   A ingénua conceção de Hilferding (da mediação financeiro capitalística das crises) seria posta a ridículo, da forma mais cruel, mal eram passadas duas décadas após a publicação da sua obra. Em flagrante contradição com as suas previsões formou-se, no fim dos anos vinte, a até aí maior bolha financeira de todos os tempos, que deu lugar a falências bancárias sem precedentes, a enormes bancarrotas e à devastadora crise económica mundial.
   Mas também, doutro ponto de vista, falharam as previsões do marxismo tradicional. Longe de adormecer, lentamente o antissemitismo inundou, progressivamente, o mundo inteiro nessa época de crise e, na Alemanha, tornou-se doutrina de estado para o assassínio em massa.

   Como foi isso possível? 

Carlos Fiúza
(continua)

1 comentário:

Anónimo disse...

Osso duro de roer.Não sei como vou fazer uma apreciação global.
JLM